Médicos
que vivem de clínica particular são aves raríssimas. Mais de 97% prestam
serviços aos planos de saúde e recebem de R$ 8 a R$ 32 por consulta. Em média,
R$ 20.
Os
responsáveis pelos planos de saúde alegam que os avanços tecnológicos encarecem
a assistência médica de tal forma que fica impossível aumentar a remuneração
sem repassar os custos para os usuários já sobrecarregados. Os sindicatos e os
conselhos de medicina desconfiam seriamente de tal justificativa uma vez que as operadoras não lhes permitem acesso às
planilhas de custos.
Tempos atrás, a Fipe realizou um levantamento do custo de um consultório-padrão, alugado por R$ 750 num prédio cujo condomínio custasse apenas R$ 150 e que pagasse os seguintes salários: R$ 650 à atendente, R$600
a uma auxiliar de enfermagem, R$ 275 à faxineira e R$
224 ao contador. Somados os encargos sociais (correspondentes a 65% dos
salários), os benefícios, as contas de luz, água, gás e telefone, impostos e
taxas da prefeitura, gastos com a conservação do imóvel, material de consumo,
custos operacionais e aqueles necessários para a realização da atividade
profissional, esse consultório-padrão exigiria R$ 5.179,62 por mês para sua
manutenção.
Voltemos às consultas, razão de existir dos consultórios médicos. Em princípio, cada consulta pode gerar de zero a um ou mais retornos para trazer os resultados dos exames pedidos. Os técnicos calculam que 50% a 60% das consultas médicas geram retornos pelos quais os convênios e planos de saúde não desembolsam um centavo sequer.
Façamos a conta: a R$ 20 em média por consulta, para cobrir os R$ 5.179,62 é preciso atender 258 pessoas por mês. Como cerca de metade delas retorna com os resultados, serão necessários: 258 + 129 = 387 atendimentos mensais unicamente para cobrir as despesas obrigatórias. Como o número médio de dias úteis é de 21,5 por mês, entre consultas e retornos deverão ser atendidas 18 pessoas por dia!
Se ele pretender ganhar R$ 5.000 por mês (dos quais serão descontados R$ 1.402 de impostos) para compensar os seis anos de curso universitário em tempo integral pago pela maioria que não tem acesso às universidades públicas, os quatro anos de residência e a necessidade de atualização permanente, precisará atender 36 clientes todos os dias, de segunda a sexta-feira. Ou seja, a média de 4,5 por hora, num dia de oito horas ininterruptas.
Por isso os usuários dos planos de saúde se queixam: "Os médicos não examinam mais a gente". "O médico nem olhou a minha cara, ficou de cabeça baixa preenchendo o pedido de exames enquanto eu falava." "Minha consulta durou cinco minutos."
É possível exercer a profissão com competência nessa velocidade?
Com a experiência de quem atende doentes há quase 40 anos, posso lhes garantir que não é. O bom exercício da medicina exige, além do exame físico cuidadoso, observação acurada, atenção à história da moléstia, à descrição dos sintomas, aos fatores de melhora e piora, uma análise, ainda que sumária, das condições de vida e da personalidade do paciente. Levando em conta, ainda, que os seres humanos costumam ser pouco objetivos ao relatar seus males, cabe ao profissional orientá-los a fazê-lo com mais precisão para não omitir detalhes fundamentais. A probabilidade de cometer erros graves aumenta perigosamente quando avaliamos quadros clínicos complexos entre dez e quinze minutos.
O que os empresários dos planos de saúde parecem não enxergar é que
embora consigam mão-de-obra barata - graças à proliferação de faculdades de
medicina que privilegiou números em detrimento da qualidade - acabam perdendo
dinheiro ao pagar honorários tão insignificantes: médicos que não dispõem de
tempo a "perder" com as queixas e o exame físico dos pacientes e
pedem exames desnecessários. Tossiu? Raio-X de tórax. O resultado veio normal?
Tomografia computadorizada. É mais rápido do que considerar as características
do quadro, dar explicações detalhadas e observar a evolução. E tem boa chance
de deixar o doente com a impressão de que está sendo cuidado.Tempos atrás, a Fipe realizou um levantamento do custo de um consultório-padrão, alugado por R$ 750 num prédio cujo condomínio custasse apenas R$ 150 e que pagasse os seguintes salários: R$ 650 à atendente, R$
Voltemos às consultas, razão de existir dos consultórios médicos. Em princípio, cada consulta pode gerar de zero a um ou mais retornos para trazer os resultados dos exames pedidos. Os técnicos calculam que 50% a 60% das consultas médicas geram retornos pelos quais os convênios e planos de saúde não desembolsam um centavo sequer.
Façamos a conta: a R$ 20 em média por consulta, para cobrir os R$ 5.179,62 é preciso atender 258 pessoas por mês. Como cerca de metade delas retorna com os resultados, serão necessários: 258 + 129 = 387 atendimentos mensais unicamente para cobrir as despesas obrigatórias. Como o número médio de dias úteis é de 21,5 por mês, entre consultas e retornos deverão ser atendidas 18 pessoas por dia!
Se ele pretender ganhar R$ 5.000 por mês (dos quais serão descontados R$ 1.402 de impostos) para compensar os seis anos de curso universitário em tempo integral pago pela maioria que não tem acesso às universidades públicas, os quatro anos de residência e a necessidade de atualização permanente, precisará atender 36 clientes todos os dias, de segunda a sexta-feira. Ou seja, a média de 4,5 por hora, num dia de oito horas ininterruptas.
Por isso os usuários dos planos de saúde se queixam: "Os médicos não examinam mais a gente". "O médico nem olhou a minha cara, ficou de cabeça baixa preenchendo o pedido de exames enquanto eu falava." "Minha consulta durou cinco minutos."
É possível exercer a profissão com competência nessa velocidade?
Com a experiência de quem atende doentes há quase 40 anos, posso lhes garantir que não é. O bom exercício da medicina exige, além do exame físico cuidadoso, observação acurada, atenção à história da moléstia, à descrição dos sintomas, aos fatores de melhora e piora, uma análise, ainda que sumária, das condições de vida e da personalidade do paciente. Levando em conta, ainda, que os seres humanos costumam ser pouco objetivos ao relatar seus males, cabe ao profissional orientá-los a fazê-lo com mais precisão para não omitir detalhes fundamentais. A probabilidade de cometer erros graves aumenta perigosamente quando avaliamos quadros clínicos complexos entre dez e quinze minutos.
A economia no preço da consulta resulta em contas astronômicas pagas aos hospitais, onde vão parar os pacientes por falta de diagnóstico precoce, aos laboratórios e serviços de radiologia, cujas redes se expandem a olhos vistos pelas cidades brasileiras. Por essa razão, os concursos para residência de especialidades que realizam procedimentos e exames subsidiários estão cada vez mais concorridos, enquanto os de clínica e cirurgia são desprestigiados.
Aos médicos, que atendem a troco de tão pouco, só resta a alternativa de explicar à população que é tarefa impossível trabalhar nessas condições e pedir descredenciamento em massa dos planos que oferecem remuneração vil. É mais respeitoso com a medicina procurar outros meios de ganhar a vida do que universalizar o cinismo injustificável do "eles fingem que pagam, a gente finge que atende".
O usuário, ao contratar um plano de saúde, deve sempre perguntar quanto receberão por consulta os profissionais cujos nomes constam da lista de conveniados. Eu teria medo de ser atendido por um médico que vai receber bem menos do que um encanador cobra para desentupir o banheiro da minha casa. Sinceramente.
Artigo publicado no caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo, de 18 de setembro de 2004
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